Gustavo Valério

O Poeta Notívago

Chuva de Sangue

Gustavo Valério Ferreira

Soneto

Chuva de sangue em dia purulento:
quanto vale uma vida quase humana?
A bala é forte e corta até o vento…
redefinição do fim de semana?

Uma neblina deixa o olhar cinzento,
a alma morta na pólvora que emana
do tubo de metal, bélico invento
esvai-se sem amor e sem nirvana.

Quem determinou o valor da vida?
Quem é capaz de ter algum valor
diante da insanidade envolvida?

Alguém vai deter a chuva de sangue
quando as vidraças mudarem de cor
e o líquido vital tornar-se um mangue?

Narração:

Neblinas nos Olhos

Gustavo Valério Ferreira

Soneto

Dormimos calmamente igual lacaios;
Entregamo-nos quando o sono é forte…
Não sabemos que as noites são ensaios
para o triste dia da nossa morte.

Ingênuos a dormir feito animais
neste intenso mar somos os abrolhos
nas superfícies artificiais
co’ imensidão e neblinas nos olhos.

Este mundo cinzento - é o que vemos;
o verde há muito tempo já se foi.
As estrelas sequer apercebemos
estamo’ extintos como o peixe-boi…

Morremos de repente feito a luz
que se acende e se apaga, mas seduz.

Narração:

Revertendo a Morte

Gustavo Valério Ferreira

Soneto

Ao deus que não existe não suplico
nem ao deus que existe vou suplicar.
Os deuses não são de verdade, explico!
Mas tu não deixarás de acreditar!

O deus que existe, existe nas figuras
que céticas quanto ao mundo real
sente-se confortáveis e seguras
ao crer que irão pr’um mundo surreal.

É verdade! - Dirão com gran certeza,
ao morrer seguiremos o juízo.
Mas tal afirmação tem estreiteza
que pode causar grande prejuízo.

Não tenho um livro nem deus como norte
mas leio livros que revertem morte.

Narração:

Por Dentro

Gustavo Valério Ferreira

Soneto

O sonho escorregou, levou um baque
e o sonhador acordou num puxão.
Pulso acelerado, eis um breve ataque
há um choque por dentro do coração.

Logo o sonhador se desmancha em águas,
o pulso molda a dor da triste sina…
A esperança é sem cor e só traz mágoas
dum futuro de horror sem atropina…

Por dentro do homem dorme um viajor:
um lobisomem prestes a acordar.
O homem é o cruel catalisador
na tenra maldade a enchafurdar.

O homem é o salvador que habita o centro
do destruidor que carrega por dentro.

Narração:

Ecos Genéticos

Gustavo Valério Ferreira

Soneto

Ecoam na mente os ecos da morte
e velozmente escancaram meu corpo;
ecos retumbantes dum som mui forte,
profundo estímulo aloanticorpo…

Em choque percorrem a minha pele,
e as células morrem devagarzinho;
O céu vingativo até me repele
e os ecos são mortes num só caminho…

E morro aos poucos a cada eco eterno
que me silencia e rouba meu brilho…
Sóbrio e sozinho em meu pesar interno
sigo o caminho vil como andarilho…

Energia estranha de obscura luz
em minhas entranhas morte introduz.

Narração:

Nanquim Vermelho

Gustavo Valério Ferreira

Soneto

Em mil novecentos e trinta e sete
o sangue humano transformou-se em tinta
a humanidade que a todos compete
foi ignorada e loucamente extinta.

Uns nipônicos mudaram a forma
de pintar a cidade de vermelho;
num jogo sádico de uma só norma:
matar, estuprar e pôr de joelho…

A morte certa, tal qual em Canudos
pediu cabeças como recompensa;
na regra doentia dos “três tudos”
permitir um viver era uma ofensa…

Sem Conselheiro, o massacre em Nanquim
foi dos massacres em massa, o estopim.

Narração:

Luta Incessante

Gustavo Valério Ferreira

Soneto

O peso do mundo sufocando a morte
a morte sufocada, sufoca a vida
a vida sufocada, sufoca a sorte
a sorte sufocada é mal resolvida.

O peso da morte desalinha o norte
o norte sem linha-base definida
predefine no vácuo, um profundo corte
que corta até as chances duma sobrevida.

Sobre a vida humana promove boicote
faz do simples humano um ralé mascote
que morre somente para pagar dívida…

O peso do mundo é mortal sacerdote
sufoca a humanidade e de camarote
vê-nos padecer vivos em carne lívida.

Meu Reflexo

Gustavo Valério Ferreira

Soneto

Olho p’ra o nada e não consigo ver
além do reflexo seco que sou…
Horizonte imitado é o meu ser,
minh’alma ilimitada hibernou…

O pensamento vão do entardecer
que vem em vão, no vão, já começou
vagarosamente me enlouquecer;
o mal, meus pensamentos, permeou…

Vou lentamente desaparecer
sugado pelo ar que me dominou
e que secou meu prazer de viver…

Meu canto é triste e à morte respirou
foi ao espaço para transcender
como um balão furado que voou.

A Traição

Gustavo Valério Ferreira

Soneto

A traição em tua porta bateu
e três vezes, o teu corpo, invadiu;
perfurou-te na noute à sangue frio,
pintou o chão de vermelho e correu…

Por três vezes a traição te venceu
e em teu corpo habitou, fez-te vazio
naquela noute amarga destruiu
todos teus sonhos e te emudeceu…

Silenciei-me no dia sombrio
em que teu sorriso não reluziu
e tua presença forte, morreu…

O dia nasceu morto e fugidio
o sol, tão triste, quase não luziu
e o céu chorando, em nuvens te acolheu.

Modelo Inconsciente

Gustavo Valério Ferreira

Soneto

Todo o céu está sangrento
chove sangue nos humanos…
São tempos diluvianos…
É preciso engajamento…

O ácido tornou-se vento,
negros são caucasianos,
e os brancos são africanos…
Falta-nos conhecimento…

Somos todos levianos
destruindo os belos planos,
nesse modelo avarento…

Seremos menos insanos
na hipocrisia dos anos
buscando empoderamento?