Gustavo Valério

O Poeta Notívago

SORTE

Gustavo Valério Ferreira

Sorte é importante no status quo
desta sociedade; é adereço
que serve também como um endereço
que leva o mundo a um estado oblíquo.

E lá não há ajuda nem de propínquo
e é improvável obter recomeço
antes de pagar todo e qualquer preço
de abusar deste recurso longínquo.

É certo saber antes do tropeço
que a sorte é o caminho mais avesso
cujo destino é um lugar iníquo.

Pela sorte não tenho algum apreço,
faço só, o meu fim e o meu começo
e este modo de viver é relíquo.

Narração:

métricasonetodecassílabonarração

EXTRATERRESTRE

Gustavo Valério Ferreira

O teu amor por mim é extraterrestre
e excede o que posso compreender…
Tu tentas, aos poucos me reviver
mas sou vazio e da frieza, um mestre.

Desejas-me há muito mais d’um semestre
e mediante a teu tanto sofrer
sequer aparentas desfalecer…
És mui jovem porém forte; és rupestre.

Esse modo estranho de me querer
diferente e difícil de entender
corre em meu coração feito um pedestre.

E eu, mui louco, mas tentando aprender
como é que faço para reacender
minh’alma morta, gélida e terrestre.

Narração:

métricasonetodecassílabonarração

AMÁLGAMA

Gustavo Valério Ferreira

A eterna saudade que hei de sentir
haverá de me matar lentamente
e pranteando copiosamente
tento, no inferno, não imiscuir.

Parece impossível desconstruir
as lembranças tuas na minha mente
que aparecem e exponencialmente
tentam rapidamente me excutir…

Morrestes, mas voltas frequentemente
a visitar meus sonhos; e a sorrir
matas-me com teu amor comovente.

Eu já não consigo mais te impedir
pois nosso fim é, paradoxalmente
a nossa única forma de existir.

métricasonetodecassílabo

ETERNO DESCANSO

Gustavo Valério Ferreira

Eis que o fim está próximo, digo,
logo, toda a dor há de findar
e de toda a paz poderei gozar
sem ter o tempo como inimigo.

Espero solitário e consigo
por muito mais, ainda esperar
aguardo a paz contextualizar
o descanso que terei como amigo.

Não preciso sequer agonizar
pois não existe sombra de perigo
que seja capaz de me atrapalhar…

Terei o descanso como castigo,
vida e morte num harmonizar
bem dentro do meu eterno jazigo.

métricasonetodecassílabo

ÚLTIMA QUEDA

Gustavo Valério Ferreira

O amor à vida apenas nos azeda
torna-nos amargos e ignorantes
ácidos, egoístas e arrogantes
alimentando aquilo que nos veda.

Tal amor, nossa cegueira leveda
em visões singelas e contrastantes
que se destacam em interessantes
situações que o egoísmo enreda.

O amor à vida traz exorbitantes
preços obscuros e decepcionantes
e exige nossa alma como moeda.

Vivemos a vida como imigrantes
deste amor que nos torna coadjuvantes
’té acordarmos na última queda.

métricasonetodecassílabo

ALMA

Gustavo Valério Ferreira

Minh’alma penando nas madrugadas
pagando pecados, esperando a hora
que este mundo a deixará ir embora
loucamente por escuras estradas.

E arrastando-se em eternas calçadas
ela grita, resmunga, canta e chora;
sua tristeza, aos poucos a devora
co’ antigas lembranças deturpadas…

Sua bondade, devagar, deflora
em novas memórias tão desgraçadas
que colidiram nos tempos, outrora…

E perdida entre outras almas penadas,
no vazio que em nada colabora
morre nas sombras anastomosadas.

métricasonetodecassílabo

ELA

Gustavo Valério Ferreira

Lá vem a minha querida donzela,
vem dançando entre os vendavais, tão pobre
e faz com que o tempo congele e dobre
nas ruas assombrosas da favela.

Anda, parando o vento com cautela
distraindo a todos com seu ar nobre
cegando-os do mal que seu mel encobre
da maneira mais mortal e singela.

O vento pérfido e candor descobre
que uma pureza divinal daquela
é algo raro e dalgum bem exprobre…

E descobriu que ela é uma sentinela
e o seu coração é um estranho alfobre
do mal e da morte que habita nela.

métricasonetodecassílabo

VIOLINO NOVO

Gustavo Valério Ferreira

Ganho vida ao tocar meu violino
e d’um sonho transcendental acordo
viajando em suas notas, transbordo
num mar calmo, pacífico e divino.

Um beija-flor me beija matutino
e eu, bem delicadamente, o abordo;
prendo-me em suas asas; vou à bordo
do acaso certo como peregrino.

Este céu azul me atrai e eu concordo
decolo sem medo num desatino
pois sou do céu! Sou livre como um tordo!

E voando em busca do meu destino
do meu novo violino, recordo
então volto ao meu mundo clandestino.

métricasonetodecassílabo

MINUTO LONGO

Gustavo Valério Ferreira

Tempo nada tem além da ilusão
que tudo detêm pois é a razão
que rouba veloz pedaços de vida;
o tempo é algoz, é fera ferida…

É morte a matar, é uma diástole
de vida a findar na última sístole…
É brisa do mar na eterna partida;
leão a bradar - paixão elidida…

E nada farei num longo minuto
calado chorei num pranto fajuto
O tempo é o rei de todos os lutos.

Meu sonho já foi em casos volutos
deixados depois num raso estatuto.
Morremos nós dois - tempo tem tributo.

métricasonetodecassílaboibéricoestoico

QUEIMAÇÃO

Gustavo Valério Ferreira

A morte indolor pegou-me de jeito
O sonho acabou de ser imperfeito
Lágrima que dói e deixa ferida
rápida, corrói a gota da vida…

Sem sono pretendo ofuscar a luz
que não compreendo, assaz me seduz
trava, queima e turva essa morte senra
retorce e recurva a minh’alma tenra…

A morte fugaz, no obscuro conduz
essa amarga paz que imperfeita induz
o cruel cordão que força essa lida

numa queimação forte e imerecida.
Morte desejada, amante do fim
Vida mal passada encontra estufim.

métricasonetodecassílaboibéricoestoico

PENUMBRA

Gustavo Valério Ferreira

Como preso fiquei neste anoitecer maro
Estranho ao que sei; meu belo dia penumbra
Absorvendo esta luz que a alegria ressumbra
o tenro medo induz - futuro - mal ignaro.

Necessário calor escurecendo o claro;
É doce, a gentil dor, nosso fôlego lumbra…
A vida é torpor que nos dias obumbra
chamada só de amor, pros loucos anteparo.

A morte é o condão que no humano vislumbra
E o nosso coração, tão fraco se deslumbra
e morto, vai ao chão, vê na cova um amparo.

E fiquei preso aqui, onde o canto reslumbra
E num vulpino fim, a alma, cansada, alumbra
e no último sorrir, paga o preço mais caro.

métricasonetododecassílaboalexandrino

NOVO LAR

Gustavo Valério Ferreira

Esta vil sensação causa-me uma amargura
que me derrete atroz, matando-me de novo…
E no triste sofrer noutras lágrimas chovo
cansado de morrer nesta densa ternura…

Não há fogo a queimar mas este mundo é covo
e as torturas aqui são parte da cultura…
Sensação do que fui é abreviatura
mediante o que sou neste inferno retovo…

E sofro nesta dor, perco até a postura
neste mundo sem cor de cruel tessitura
em que há amargo mel, que amargamente provo…

Mas é meu novo lar, minha nova estrutura
Aqui, quero reinar; serei outra criatura…
Quando se apaga a luz, todo o teu mundo estrovo.

métricasonetododecassílaboalexandrino

DESPERTAR

Gustavo Valério Ferreira

O inferno é aqui. Assim desperto
e quieto, abro os olhos e percebo
que ao acordar nesta terra, recebo
somente amargura; assim desconcerto.

Na sociedade como um mancebo
observo tudo; vejo o mal coberto,
consigo sentir o terror de perto,
quanto mais da realidade bebo.

E desenhando meu destino incerto
projeto nele, todo o mal enxerto
enquanto graça ao demônio, concebo…

E de todo o sentimento, liberto
enfrento o inferno; com o obscuro flerto
e infiro que a bondade é placebo.

métricasonetodecassílabo

A LUA

Gustavo Valério Ferreira

Presa neste céu solitário, a lua
vai morrendo nas noites devagar;
enquanto nós dormimos, a sonhar,
os poetas sua morte atenua…

Talvez já seja o fantasma da lua
na escuridão longínqua a postergar
a morte que cedo ou tarde virá
(a morte que co’ a vida compactua)…

E quando este dia ruim chegar
a lua, aos poucos, se apagará
na solidão terna que à noite estua…

Sem enfeites o céu não brilhará,
o namorado não namorará
e o amor perder-se-á no meio da rua…

métricasonetodecassílabo

A CORUJA

Gustavo Valério Ferreira

Está escuro e a coruja aparece
voando e emitindo seu som temido
horripilante canto num grunhido
de medo, até a alegria fenece.

E esse medo, em mim, inda permanece;
em arrepios, fico estarrecido,
sem qualquer ação, travado e tolhido…
Só me resta iniciar uma prece.

A coruja, num eco combalido
deixou-me levemente entorpecido
e assim, minha vaga vida esmorece…

E a coruja, num ataque aturdido
pegou-me no escuro, desprevenido,
comeu os meus olhos… A morte amor tece…

métricasonetodecassílabo

O LOBO

Gustavo Valério Ferreira

As madrugadas surgem assombrosas
e o lobo, do mal, por elas vagueia
uivando às sombras que à noite permeia
em densas trevas, nuvens tenebrosas…

A lua, solitária em pesarosas
fumaças, é sua única plateia…
Lobo solitário, sem alcateia
nas noites em caçadas melindrosas…

Uivando e chorando… Por sangue anseia
em desejos carnais de carne alheia
em fomes notívagas e onerosas…

Morte noturna, sua dispineia,
mata vagarosamente a sua ideia
de jantas fartas e voluptuosas.

métricasonetodecassílabo